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O Corne Inglês e sua Evolução

publicado em segunda-feira, 3 de novembro de 2014
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A Evolução do Corne Inglês  

Vídeos ilustrativos com peças da música clássica no final do texto.

O objetivo deste artigo é tentar desvendar e esclarecer alguns pontos na evolução do corne inglês, aspectos como maneira de construção, tendências e diferenças geográficas que contribuíram para que o corne inglês chegasse aos dias de hoje como um instrumento muito importante na orquestra.
Enquanto a história do oboé já está consolidada e bem documentada, na do corne inglês ainda há pontos ainda não esclarecidos. Poucos autores se aventuraram em desvendar alguns mistérios e ainda tentam discernir algumas lacunas na história deste interessante representante da família das palhetas duplas. Assim como da evolução das charamelas nasceu o oboé, da mesma família nasceu o equivalente ao corne inglês no período pré-barroco, entretanto no início do período barroco após a consolidação do oboé, ainda existiam vários instrumentos que faziam o papel de oboé tenor ou contralto, um deles era chamado de taille du hautbois, que era um oboé “avantajado” em fá que tocava vozes mais graves como tenor e contralto. Após o lançamento do oboé tenor em corpo reto e campana aberta por Johann Christoph Denner (1655-1707), por volta de 1700, muitos compositores, inclusive Bach passaram a utilizá-lo, poucos anos depois por volta de 1722, Johann Heinrich Eichentopf (1678-1769) lançou o oboé da caccia, instrumento de corpo curvo revestido em couro e campana aberta e que soava na mesma tonalidade do oboé tenor, em fá. No início do século XIX, luthiers tentaram melhorar estes instrumentos e nasceu o corne inglês curvo e o em ângulo, que era para facilitar a execução. Estes instrumentos emitiam som a partir de uma palheta dupla e tinham a mesma mecânica dos oboés da época.
A Charamela Tenor
A tenor schawn, ou charamela tenor era um instrumento muito rudimentar, suas características de família era que ainda possuía a pirouette, uma pequena peça que envolvia a palheta dupla, esta era inserida nesta peça e ficava exposta de forma que o músico não vibrava a palheta diretamente nos lábios como no oboé, portanto era difícil manter a afinação, e também o músico não tinha muito controle sobre a palheta dupla como no oboé. Apesar destas dificuldades, a charamela tenor era o principal instrumento nos conjuntos de palheta dupla no período renascentista, era largamente utilizada em cerimoniais, dança e música militar, mesmo não sendo um instrumento solista, era o suporte da harmonia para esses grupos.



Deustsch Schalmey Richard Haka, Amsterdam (1645-1705)
Neste mesmo tempo na França, os músicos da corte já estavam tocando um novo modelo de charamela das quais se sobressaíam a charamela soprano e a tenor na famosa banda da corte do rei Louis XIII, por volta de 1625 haviam introduzido no conjunto duas charamelas soprano, quatro tenor e duas baixo, o rei seguinte, Louis XIV manteve o conjunto Les Douze Grands Hautbois du Roi, onde tocavam Jean Hotteterre e Michel Philidor que a partir de melhorias na charamela soprano construíram o primeiro oboé, não há registros, mas imagina-se que também desenvolveram uma espécie de oboé tenor que recebeu o nome de taille du hautbois.
Taille du Hautbois
A invenção do taille de hautbois ou oboé tenor ainda paira na obscuridade, há indícios que tenha sido inventado também por Hotteterre na França na mesma época do oboé normal. O termo TAILLE segundo Jeremy Montagu, sugeria todo e qualquer instrumento que tocasse a parte do tenor, da mesma forma, taille quer dizer parte ou divisão. A famosa banda da qual Hotteterre era membro,  era um grupo musical que consistia em vários instrumentos de palheta dupla numa gama que abrangia do sopranino ao contra baixo e o taille du hautbois estava presente nesta banda.
Jean Baptiste Lully em sua ópera Atys em 1676, utilizou para o acompanhamento, crumhorns na parte que caberia ao tenor, mais tarde em 1689, Lully mudou a orquestração das mesmas passagens figurando não mais o crumhorn e sim taille de hautbois. A construção do taille de hautbois, pouco difere da antiga tenor schawm, apenas foi retirada a pirouete e em alguns casos a proteção das chaves de forma que lembrava um oboé de tamanho mais avantajado. Desta forma o músico, assim como no oboé, tinha um controle maior sobre a sonoridade, já que vibrava a palheta diretamente nos lábios. A forma de seu corpo como comentado acima era de um oboé de grandes proporções, por conseguinte, os furos para serem fechados durante a execução eram mais distantes que no oboé normal, músicos com mão grande tinham mais facilidade em executá-lo. James Talbot  já havia relatado essa dificuldade ainda em 1692 em seus manuscritos sobre instrumentos de sopro de madeira. Henry Purcell utilizou um taille de hautbois, na sua ópera Dioclesian em 1690, que vem a ser uma das primeiras aparições do oboé tenor na orquestra.
O Oboé da Caccia
As dificuldades de dedilhado do oboé tenor de corpo reto foi percebida por alguns luthiers alemães da cidade de Leipzig, evidências indicam que foi Eichentopf quem projetou um instrumento de corpo curvo revestido em couro com campana aberta e metálica e o chamou de oboé da caccia, este nome foi pensado devido a curvatura de seu corpo e sua campana metálica lembrando uma trompa de caça.  Outros luthiers na cidade também construíram oboés da caccia, porém somente o de Eichentopf e um de Weigel, este de campana de madeira, sobreviveram. O primeiro está no Museu de História da Música de Estocolmo, Suécia e o segundo ficou na própria cidade de Leipzig no museu da cidade. Outros luthiers que fabricaram oboé da caccia foram os conterrâneos de Eichentopf, os irmãos Gottfried e Gottlob Bauer. Ainda em Leipzig, Caspar Gleditsch, primeiro oboísta do Stadpfeifer, começou a tocar oboé da caccia em 1722, Gleditsch, testava os oboés da caccia e ajudava a promovê-lo nos arredores. Outro nome que eram conhecidos os oboés da caccia era de waldhautbois, que quer dizer da mesma forma oboé de caça.


Coleção de instrumentos de palheta dupla do Museu de Leipzig - Alemanha
1- Oboé normal em dó fabricado por Jean-Jacques Rippert(1664-1722)
2- Oboé tenor em fá, corpo reto e campana aberta de Johann Christoph Denner(1655-1707)
3- Oboé d´amore em lá fabricado por Johann Heinrich Eichentopf(1678-1769)
4- Oboé da Caccia em fá fabricado por H. Weigel
Instrumentos 2 e 4 são citados neste texto
Assim como os outros instrumentos barrocos, o oboé da caccia tinha duas chaves e as mesmas deficiências do oboé barroco, muitas notas só eram emitidas em posição de forquilha, portanto era dificultoso tocar nele todas as tonalidades, de forma que alguns compositores não o utilizavam, Bach teria sido o primeiro a compor para este instrumento, embora para tonalidades em sustenidos ele preferia usar o oboé d´amore em lá que facilitava o uso nestas tonalidades. Diferente do taille do hautbois, o oboé da caccia atuava como solista, especialmente com Bach, que escreveu para o oboé da caccia apenas um mês após sua chegada a Leipzig. Gleditsch, oboísta da orquestra na ocasião tocou um solo em 24 de junho de 1723 na composição que mais tarde recebeu o número de BWV167/3. Bach compôs 22 cantatas onde incluía além do oboé da caccia, o taille de hautbois, o primeiro executava a parte do terceiro oboé enquanto que o segundo executava a parte do tenor dobrando com as violas. Raramente o taille de hautbois tocava partes solistas, quando havia partes solo, Bach assinalava que deveria ser executada pelo oboé da caccia.
As Origens do Corne Inglês
O termo corne inglês, traduzido literalmente seria algo como chifre inglês, porém em se tratando de instrumento musical, ele nem é corne, instrumento derivado dos chifres de carneiro, é um instrumento de madeira, portando não poderia ser derivado de chifres, corne em muitas línguas latinas e horn em inglês é o significado de chifre em português. Não é inglês porque não foi inventado por ingleses. Toda essa confusão no nome do instrumento deriva de vários termos e pronúncias que foram sendo deturpadas ao longo dos anos. Uma das teorias seria que devido o uso de instrumentos em ângulo, alguns eram chamados de cor anglé, no francês, lembrando um chifre em ângulo, porém a palavra anglé no francês é obsoleta, caiu em desuso, o que poderia gerar confusão com cor anglais (pronuncia-se cor anglé), que traduzido do francês, seria corne inglês. Uma outra teoria é que o nome do instrumento deriva do termo alemão engellisch horn, ou chifre angelical, neste caso lembrando as antigas figuras de anjo tocando um instrumento curvo lembrando o oboé da caccia e devido o seu som um tanto mais grave do que o som do oboé. Variações de pronúncia ou de entendimento entre as línguas pode ter gerado esse tipo de confusão, em meados século XVIII  ele ficou  definitivamente    conhecido  como   corne inglês,  cor anglais em  francês e english horn em inglês. Em 1723 o termo corne d´Anglois aparece numa  peça de  Tobias Volckmar, compositor alemão da região da Silésia que utilizou este instrumento na cantata Wenn nun offenbahret wird Jesus Christus, a inovação do uso de campana em bulbo para os oboés tenor, taille du hautbois, para diferenciá-lo do oboé da caccia,  foi introduzida por um luthier alemão chamado J.T Weigel, que curiosamente vivia na mesma região.


Corne Inglês em ângulo fabricado por Stephen Koch - Viena 1825
Enquanto o instrumento tinha duas chaves, não havia muita dificuldade em prendê-las ao seu corpo, porém quando outras chaves passaram a ser introduzidas no oboé e, por conseguinte no corne inglês, mais dificuldades apareceram a serem resolvidas pelos luthiers, alguns utilizavam chaves dobradas mecanicamente por dobradiças, outros já as forjavam curvas ou em ângulo. Todas essas características fizeram do corne inglês um instrumento de pouco uso na orquestra. Já no final de século XVIII  alguns compositores  deixaram de usar o  oboé em suas árias  para voz, da mesma forma o corne inglês caiu em desuso novamente. Haydn por sua vez, em 1764, compôs a sua sinfonia   nº 22 para dois corne inglês, ao invés de oboé, soando de forma totalmente incomum no diálogo com flautas, fagotes e trompas.


Corne Inglês Curvo fabricado por Guillaume Triébert - Paris cerca de 1830
No início do século XIX, o corne inglês adquiriu mais espaço entre os compositores de ópera. Era ideal para solos e acompanhamento de árias para voz. Nicoló Zingarelli compôs Il Conte di Saldagna em 1794 e Simone Mayr compôs Ginevra di Scozie em 1801, em ambas as peças há vários solos de corne inglês, acompanhando árias de voz. Alguns músicos que compuseram com maestria peças onde o corne inglês atua como solista foram Giuseppe Francesco Bianchi e Giuseppe Sarti. Outro compositor italiano enalteceu o corne inglês foi Carlo Yvon (1798-1854), com uma sonata para corne inglês e piano. Durante o período clássico, o corne inglês ficou um pouco esquecido, mas já na virada do século XIX, passou a ter um lugar de destaque na orquestra, vários compositores românticos e pré-modernos escreveram belas passagens para este instrumento durante o século XIX, outros compositores que escreveram para corne inglês foram Gaetano Donizetti (1797-1848) compôs um belo concerto para corne inglês e orquestra, Gioachino Rossini
(1792-1868), compôs um ótimo diálogo entre o corne inglês e a flauta na pastoral da abertura de Guilherme Tell.
Hector Berlioz (1803-1869) utilizou-o no adágio da Sinfonia Fantástica e na Abertura O Carnaval Romano. Pode-se ouví-lo também na  ópera Il Pirata de Vicenzo Belini (1801-1835). Mozart compôs um adágio para corne inglês violino, viola e violoncelo muito apreciado, Adágio para Corne Inglês KV580. Beethoven compôs um trio para 2 oboés e um corne inglês, muito interessante com belas nuances onde pode-se comparar o som desses instrumentos. A característica melancólica e soturna do seu timbre conquistou definitivamente os compositores românticos.
A Evolução do Corne Inglês a Partir do Século XIX
O corne inglês não era conhecido em Paris até o início do século XIX, Creditam a introdução deste instrumento no Ópera de Paris por volta de 1805 por Alexandre Ferlendis. As primeiras aparições foram no balé de Charles-Simon Catel por nome de Alexandre chez Apelles, apresentada no Ópera de Paris em dezembro de 1808, tendo como solista de corne inglês, Gustave Vogt. O corne inglês caiu nas graças dos luthiers franceses que lhe aplicaram as melhorias que tinham implementado no oboé, minimizando as dificuldades de dedilhado. Um instrumento que ganhava mais facilidade em execução e estava evoluindo tanto em técnica, acústica e mecânica, quanto em repertório. Mas os luthiers ainda trabalhavam para construir um corne inglês de corpo reto e dedilhado mais fácil, até que em 1839
Henri Brod (1799-1839) apresentou na Exposição Universal de Paris o seu Cor Anglais Moderne, ou corne inglês moderno, um instrumento de corpo reto e com a mecânica dos oboés idealizados por ele, o lançamento foi um sucesso e a partir de então a maioria dos fabricantes preferiam construir o instrumento em corpo reto. Com o lançamento do Sistema Triébert 3 em 1840, Guillaume Triébert, passou a fabricar corne inglês no mecanismo por ele idealizado. Vieram os Sistema 4, 5 e 6 e o corne inglês acompanhava a evolução, portanto já emitia todas as notas da escala cromática e tocava todas as tonalidades. Finalmente com François Lorée, o corne inglês ganhou sua definitiva e atual forma, ele recalculou a posição dos furos e diminuiu a distância entre os dedos, facilitando a execução. A partir de então, vários fabricantes passaram a oferecer corne inglês em seus catálogos e ele passou a ser mais utilizado em solos e passagens orquestrais. Foi no final do século XIX que foi composto o mais famoso solo de corne inglês no largo da Sinfonia do Novo Mundo de Antonin Dvorak (1841-1904), solo este que já ganhou vários arranjos das mais diversas formas e para vários outros instrumentos.


Corne Inglês moderno da marca F. Lorée Paris
Através de pequenos solos e passagens em óperas, o corne inglês foi aos poucos conquistando seu lugar de destaque na orquestra sinfônica. Hector Berlioz foi um compositor que muito o utilizou em suas composições. Quando escreveu o seu Tratado de Orquestração, Berlioz definiu o      corne inglês como segue: “suas dificuldades de dedilhado são um obstáculo no uso de passagens rápidas, seu timbre penetrante lembra pesar, sofrimento e tristeza. Como um sonhador, seu timbre nobre o torna superior aos outros instrumentos como uma excitante sensação de júbilo e reminiscência”. Sobre o solo de corne inglês na Sinfonia Fantástica em 1830, Berlioz deixou escrito: sentimento de ausência e total esquecimento, como uma pesarosa solidão, perderia metade da sua força se fosse executado em outro instrumento,
ele se inspirou em sua infância onde vagava pelas florestas e de longe ouvia a trompa alpina e, recostado às árvores sonhava solitário e esquecia suas dificuldades, neste solo do adágio da Sinfonia Fantástica, o corne inglês toca dialogando com o oboé, formando uma harmonia perfeita. Através de seus tratados e composições, Berlioz o introduziu definitivamente na orquestra, mostrando a sua real importância na orquestra como instrumento de caráter ímpar.
A partir de meados do século XIX, luthiers passaram a fabricar corne inglês curvos ou em ângulo usando a mesma mecânica que equipava os oboés da época, estes instrumentos se tornaram raros e muito procurados por colecionadores. Após o lançamento do corne inglês reto por Brod, os luthiers franceses passaram a fabricar instrumentos retos. A partir do lançamento do Triébert sistema 3, muitos fabricantes, franceses, italianos e alemães passaram a fabricar corne inglês nessa mecânica. Depois do lançamento dos sistemas de Triébert, o corne inglês passou a evoluir em conjunto com o oboé. Com François Lorée o corne inglês recebeu seus últimos avanços, recalculando a furação e readequando a mecânica para facilitar ainda mais a maneira de tocá-lo. Nos dias de hoje é fabricado no Sistema Gillet e seu dedilhado é o mesmo do oboé.
Após o final do século XIX, o corne inglês passou a ser mais utilizado em peças orquestrais diversas, Ravel utilizou-o no seu Bolero, Mahler em suas sinfonias e muitos outros compositores do pós-romântico e pré-moderno. Na atualidade, algumas orquestras pop utilizam o corne inglês em seus arranjos de música de sucesso, alguns cantores o incluem em suas canções.

Vídeos Ilustrativos:

Dvorak: Solo de Corne Inglês do Largo da Sinfonia do Novo Mundo com a Filarmônica de Berlim regida por 
                Gustavo Dudamel e solo de corne inglês com Dominik Wollwnweber, solista de corne inglês da orquestra.

Bach: Aria (basso, oboe da caccia) Mache dich, mein Herze, rein, da Paixão Segundo São Mateus
           BWV244 com oboés da caccia, que aparecem no tempo 1:07

Mozart: Ave Verum Corpus KV618, Arranjo de Splider para corne inglês, cordas e órgão com Albrecht Mayer ao
               corne inglês.

 



           



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Fábio paixão




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